segue um trecho extraído de Um programa de homicídio. Carta do morto pobre nº 2, de Ferreira Gullar
"A lama, a sua cintilação. Os capins explodidos. O fedor da inconsistência. As árvores, os troncos, as cascas. A solidão, a solidão da vida! as raízes fendem o chão seco. O chão do planeta, de brilhos. O planeta silencioso. Suspenso como uma pêra. A vegetação, como órgãos. Os homens, como órgãos. O que roça a terrível crosta, a poeira da claridade. Os sóis errantes fazem e desfazem o espaço. As velhas esferas de pó, no vazio de pó, feras, oh combustão, as severas paredes de éter, a infinita, a anuladora coincidência! gira, gira os rios indo. Os peixes, a sua desesperante ignorância de tudo. As pedras do chão e as que se levantam em vôo. Em verdade, tudo cai. Os rios nunca passam. O lodo, a mesmice das águas. O nada. Giram giram. O homem de pé. O homem sentado. O homem de costas. Bicho sem apoio!"
postura pessoal
Podemos pensar que todas as pessoas são artistas, potencialmente. A arte seria assim uma qualidade humana comum, que passa pela sensibilidade, percepção, habilidade intelectual e manual, corporal e mimética, senso estético, senso lúdico, senso de humor, senso crítico. A produção de obras, nas mais diversas modalidades artísticas - desenho, pintura, fotografia, dança, teatro, música, arquitetura, cinema, computação, poesia, literatura etc -, essa sim, exigiria um desenvolvimento específico, mais intensivo, uma dedicação de fato integral. Mas de nada adianta essa parte, que podemos chamar de técnica, obrigatória ao exercício das artes, sem aquela primeira, comum, despojada, que nos joga de cara com a complexidade da vida, o senso ético, a força dos valores, os jogos de poder, os embates, as dúvidas, o inexplicável da existência, nossas limitações, desejos e necessidades.
Inspirado na leitura de SCHLEIERMACHER, Friedrich. Esthétique. Tous les hommes sont des artistes. Paris: Cerf, 2004.